Arquivo mensal: Julho 2025

Automação do Desejo – Parte I

A revolução da inteligência artificial (IA) chegou campo da pornografia. Bom, não que isso seja a novidade, porque a indústria porn é desde muito vanguarda no uso de tecnologias. Ferramentas de deep learning agora geram imagens e vídeos hiper-realistas, chatbots simulam conversas eróticas e plataformas personalizam conteúdos íntimos conforme os gostos “do cliente”. Como sempre, nada disso é apenas sobre sexo, e surgem novas versões de velhas perguntas: a IA na pornografia está aprofundando padrões de exploração e objetificação, ou poderia ser usada para desafiar normas e construir novas narrativas eróticas?

IA na indústria pornográfica hoje

A indústria adulta sempre adotou rapidamente novas tecnologias – do vídeo caseiro nos anos 1980 ao streaming online nos 2000, muita coisa que seria regra mais tarde começou a ser difundadida através do pornô (inclusive, nadaver mas tem a ver, as bets, mas isso fica pra outra conversa). Mas, com a IA, essa transformação atinge um novo patamar. Hoje vemos avatares gerados por IA, modelos sintéticos em 3D, clones de voz e chatbots interativos tornarem-se comuns na pornografia, personalizando e dinamizando o conteúdo. Plataformas especializadas centralizam ferramentas de IA para adultos, categorizando desde geradores de “texto para pornô” até deepfake engines e “namoradas virtuais” por IA.

Sem ilusões tecnicistas, é importante lembrar que cada “salto” tecnológico na indústria pornográfica correspondeu a uma nova forma de intensificar a produção e baratear a distribuição, muitas vezes em detrimento do trabalho humano. A passagem do cinema para o vídeo caseiro nos anos 1980, e deste para o streaming nos anos 2000, já representou um processo de precarização para performers, que viram seus cachês diminuírem diante da massificação do conteúdo. A IA não é um “novo patamar” isolado; é a culminação lógica desse processo histórico: a busca pela produção de conteúdo com custo marginal próximo de zero, eliminando a necessidade do trabalhador de “carne e osso” e, consequentemente, de seus direitos e cachês.

Falando em não pagar cachê – pra ficar no raso – uma das aplicações mais famosas pro grande público são os vídeos deepfake – montagens que usam redes neurais para trocar o rosto de uma pessoa pelo de outra em cenas diversas. O avanço dos algoritmos tornou essas falsificações cada vez mais acessíveis e realistas. Pesquisadores do Oxford Internet Institute identificaram quase 35 mil ferramentas de deepfake disponíveis abertamente, capazes de gerar imagens suas sem roupa mais rápido até mesmo do que você tira a roupa: em apenas 15 minutos, usando 20 fotos de referência, podemos ter seu rosto em qualquer perversão. Inicialmente restritos a quem tinha conhecimentos técnicos, hoje até aplicativos de celular permitem criar deepfakes. Resultado? Um aumento explosivo de pornografia artificial: em 2019, estimou-se que 96% de todos os deepfakes na internet eram pornografia, quase sempre colocando rostos de mulheres em conteúdos explícitos sem consentimento. Esse tipo de ferramenta, muitas vezes etiquetada com termos como “pornô” ou “nude”, tornou-se um novo instrumento de assédio e violação de privacidade na era digital,com sites com a opção inclusive de “undress” (desvestir) a partir de uma foto, tendo eles importante papel nas tretas de revenge porn. Como resume a pesquisadora Nina Schick, “deepfake porn é hoje uma arma de violência de gênero online”. A maioria esmagadora das vítimas? Mulheres.

Historicamente, a luta feminista estabeleceu o consentimento como pilar inegociável da interação sexual. A IA, neste contexto, surge como uma arma para contornar tecnologicamente essa conquista histórica. A maioria dos deepfakes serem pornografia não consensual de mulheres não é um mero efeito colateral; é a manifestação de uma estrutura de poder misógina que agora encontra na tecnologia a ferramenta perfeita para exercer violência sem a necessidade de interação física, de forma anônima e em escala industrial.

Outro uso corrente da IA no sexo online são os chatbots eróticos e assistentes virtuais. Modelos de linguagem avançados (como o ChatGPT) têm sido adaptados para conversas salientes, permitindo que usuários simulem sexting ou revivam os tempos de hotline (só quem discou 999 sabe). Existem já apps e serviços dedicados que oferecem “namoradxs virtuais” – bots programados para sexting, envio de “nudes” geradas por IA e até simulação de voz sensual. Uma start-up treinou chatbots para assumirem personalidade de estrelas do entretenimento adulto, engajando fãs em conversas eróticas realistas e personalizadas (não me pergunte sobre os royalties…). Esses sistemas aproveitam a capacidade da IA de imitar intimidade, criando a ilusão de envolvimento emocional e sexual sob medida para cada cliente. Embora algumas plataformas generalistas tenham políticas que vetam conteúdo sexual explícito, há todo um mercado em rápida expansão de chatbots porn atuando “à margem” das grandes Big Tech como a própria indústria pornográfica em relação à indústria de outros gêneros – ou seja,  um “vale do silício adulto” onde a experimentação (?) corre solta e investidores já veem potencial lucrativo.

Nesse ponto, é importante implicar alguns sujeitos: quem financia a infraestrutura computacional para treinar esses modelos? Qual a lógica de negócio que torna a criação de modelos de OnlyFans geradas por IA um investimento atrativo? A questão não é apenas um punhado de indivíduos mal-intencionados, mas um sistema econômico que incentiva a automação, a escala e a extração de valor a qualquer custo. Por mais crença no pós-porno que tenhamos, impossível ignorar que a pornografia como lingaugem e produto tem seguido a uma lógica extrativista que é a verdadeira força motriz por trás da nova etapa da automação da objetificação. A pornografia por IA não é apenas um problema de gênero; é um produto exemplar do capitalismo tardio, onde a intimidade, o desejo e a própria identidade se tornam commodities infinitamente replicáveis e monetizáveis.

A parte as implicações morais dessa “experimentação”, o lastro dessa tecnologia é bem latente: o poder computacional colossal exigido. Os “aplicativos de celular” que criam deepfakes e as plataformas de “namoradxs virtuais” não operam no vácuo. Eles dependem, invariavelmente, da infraestrutura de computação em nuvem e do hardware fornecidos pelas mesmas “grandes Big Tech” das quais supostamente estariam à margem. Assim, essa liberdade criativa se mostra bem restrita: aos mesmos gatos pingados brancos héteros ricos de sempre.

Sem novidades até ai, a indústria pornográfica sempre esteve ligada a redes de capital, mas a era da IA aprofunda essa dependência. O que se observa não é uma descentralização, mas uma concentração de poder infraestrutural. As Big Tech controlam os meios de produção (os modelos de linguagem, os servidores, a capacidade de processamento), enquanto uma miríade de pequenas empresas e desenvolvedores individuais competem em um mercado predatório, pagando para usar essa infraestrutura.

Nesse cenário, além das musas interioranas que roubam aposentadoria de velhinhos trouxas incautos, surgem as modelos virtuais e pornstars sintéticas, personagens digitais hiper-realistas, criadas por IA e sem lastro na existência física, já estrelas de conteúdos adultos. Algumas são desenvolvidas pela combinação de algoritmos generativos com modelagem 3D: produzem fotos e vídeos de pessoas que não existem, mas cujas aparências são indistinguíveis de atrizes ou atores reais. Essas criações podem ser controladas inteiramente por seus criadores (geralmente homens, como veremos adiante) e usadas para produzir quantidades ilimitadas de pornografia sob demanda. Há exemplos notórios: em 2023, a modelo virtual “Sarah Jordan” chegou a dar uma entrevista sobre sua dieta e exercícios (!!!!!) como a primeira super musa de IA. Por trás dessa personagem, escondia-se um desenvolvedor que alimentava suas redes sociais com vídeos glamurosos de influencer mas que eram, na verdade, imagens de mulheres reais, apropriadas e modificadas via face swap. Esse caso ilustra como a IA possibilita uma nova geração de celebridades pornográficas fictícias, geridas nos bastidores por terceiros que têm recebido a sugestiva alcunha de “AI Pimps” (ou cafetões de IA).

Por fim, a personalização de conteúdo atinge novos níveis com IA. Plataformas de vídeo adulto sempre usaram algoritmos de recomendação para sugerir cenas conforme o histórico do usuário, sendo referência e vanguarda no tema. Agora, porém, fala-se em “pornô sob medida”: conteúdo gerado dinamicamente a partir de preferências individuais. O Machine learning pode analisar o que excita cada assinante – preferências de gênero, corporalidades, fetiches – e sugerir em tempo real (durante sua busca em sites, por exemplo) ou então produzir cenas exclusivas adaptando esses parâmetros. Já existem ferramentas de troca de rostos (face-swapping) que, de forma privada, permitem o usuário inserir seu rosto (ou de outra pessoa, com ou sem consentimento) em um vídeo pornô, criando a fantasia de “estar” na cena. Outras aplicações possibilitam ajustar detalhes como posição de câmera, diálogos ou intensidade de atos via comandos de voz ou texto, quase como um jogo erótico interativo, tipo montando seu personagem no videogame ou naquela febre dos anos 2000 de montar sua boneca. Em resumo, a IA promete transformar o consumo adulto de algo passivo – assistir a um vídeo genérico – em algo ativo e participativo, no qual cada pessoa se torna a protagonista de sua narrativa erótica personalizada. Pro bem e pro mal.

Nós, feministas libertárias, sempre fomos pela autonomia corporal e sexual: o direito de uma mulher de controlar seu corpo, seu prazer e sua representação. A “personalização” oferecida pela IA, no entanto, é um simulacro dessa autonomia. O usuário não está criando uma “narrativa”; ele está selecionando parâmetros dentro de um sistema fechado, colhendo as referências que já existem e retro-alimentando um algoritmo com seus dados de desejo. Trata-se aqui da automação da fantasia, não da conquista da autonomia

Existe regulamentação? Quase. A indústria pornográfica adere a tecnologias novas (e-commerce, streaming, VR etc.) justamente pela área cinza que ocupam, o que implica no “avanço” da tecnologia e consequente regulamentação, mas também em anos de operação sórdida e desregulada. Com IA não é diferente: sites especializados como Porndude AI indexam surpreendentes dezenas de ferramentas e serviços voltados ao sexo por IA . E grandes empresas não ignoram seus usos: A OpenAI (criadora do ChatGPT), por exemplo, revelou em 2024 que considera maneiras de permitir geração de conteúdo adulto “de forma responsável” para usuários maiores de 18 anos, reconhecendo que simplesmente banir todo erotismo de suas plataformas deixa uma demanda reprimida (que migra, com seus dados e recursos, para soluções alternativas).

Ou seja, a presença da IA na pornografia não é mais hipótese futurista – é uma realidade aqui e agora, complexa e em rápida evolução. Mas quais suas implicações práticas?

E as pessoas trabalhadorxs sexuais?

Em nossa perspectiva materialista, não é possível falar sobre pornografia sem considerar quem produz esse material: os/as trabalhadorxs sexuais e performers. São elas, eles e elus que historicamente foram exploradxs pela indústria, mas também encontraram na pornografia um meio de sustento, expressão e subversão. Com a IA entrando em cena, qual o impacto para essas pessoas? Estarão as máquinas roubando seus empregos? A resposta é foda mas não é simples.

De um lado, há um alerta de ameaça pairando sobre as carreiras no entretenimento adulto. Quando um investidor de tecnologia tuita empolgado que “até 2025, mais da metade das modelos de sucesso no OnlyFans serão geradas por IA secretamente administradas por homens”, isso soa terrivelmente desanimador. A ideia de “cafetin@s virtuais” (os tais AI pimps) criando modelos sintéticas e colhendo lucros aponta para uma possível precarização extrema: as trabalhadoras reais seriam substituídas por bonecas digitais, sem direitos, sem limites de jornada, sem custo algum além do servidor rodando, exploradas por um cafetão sem sequer o glamour das ruas (menos 50cent, mais Andrew Tate). Uma matéria de jornal flagrou casos de homens anônimos operando múltiplas “influenciadoras virtuais” em plataformas adultas, usando fotos e vídeos roubados de mulheres reais para dar veracidade às fakes. Essas “pornstars de IA” angariam assinantes que pagam por conteúdo achando se tratar de uma mulher de verdade. Além do golpe no “consumidor”, isso é um roubo de mercado e identidade: modelos reais tiveram seu público desviado por cópias não autorizadas de si, algo que uma modelo australiana descreveu indignada como “roubo descarado – parem de ganhar dinheiro em cima de nossos corpos”. Para as pornstars e camgirls, ver seu rosto inserido digitalmente em cenas que nunca filmaram (às vezes em contextos que nunca aceitariam) é não apenas traumatizante, mas, sendo realista, pode afetar sua reputação profissional e meios de subsistência. Quem vai pagar por vídeos novos de uma atriz se a internet está inundada de falsificações gratuitas (e potencialmente mais “extremas”) com o rosto dela?

Mesmo fora do contexto de fraude, a IA traz uma concorrência desleal. Conteúdos eróticos sintéticos podem ser gerados em massa, a um custo irrisório, enquanto a produção humana envolve pagar equipes, performers, estúdios. Assim, empresas podem preferir investir em CGI adulto ao invés de elencos de carne e osso. Pornografia sempre foi um mercado saturado e competitivo; agora, as trabalhadoras sexuais enfrentam também o “exército reserva” das modelos virtuais infinitamente replicáveis. Em suma, a IA acontece como mais uma rodada de desvalorização e invisibilização do trabalho sexual – uma continuidade do que já ocorreu com a disseminação do pornô gratuito na internet, que na época reduziu drasticamente a renda de atrizes e atores.

Alguns profissionais, no entanto, até usam IA. A revista Wired fez uma reportagem com influencers (?) do OnlyFans usando chatbots treinados em seus estilos de escrita para manter conversas 24h com fãs, simulando sua “voz” enquanto dormem ou fazem outras atividades. Temos que concordar que poucas profissões oferecem a possibilidade de uma automação de diálogos/serviços com tamanho grau de eficiência. Há também iniciativas de avatars híbridos, onde a própria performer cria uma versão virtual de si para determinados conteúdos: ela escaneia seu corpo em 3D ou treina uma IA com suas fotos, e então gera vídeos semi-sintéticos controlando as cenas que quer (por exemplo, para produzir pornografia hardcore sem se expor fisicamente a certos atos). Dessa forma, a tecnologia poderia ser usada para proteger trabalhadoras, permitindo que criem fantasias sem colocar seus corpos em risco real.

Claro que essas estratégias levantam suas próprias questões éticas (de transparência com o público ao debate moral sobre algumas fantasias), mas ilustram que trabalhadorxs sexuais não precisam ser apenas vítimas passivas da IA – teoricamente podem operar a máquina também. Profissionais do sexo sempre demonstraram resiliência e criatividade para sobreviver às mudanças (da clandestinidade às novas mídias). Na era da IA não seria diferente: muitos já se organizam para ter voz na regulamentação e desenvolvimento dessas tecnologias, sem romper no entanto com o recorte global de exploração do trabalho. Um grupo de profissionais e empreendedores do sexo, como diretora “feminista” Erika Lust, e a Aliança Europeia pelos Direitos dxs Trabalhadorxs Sexuais, publicou uma carta aberta à União Europeia exigindo assento nas discussões sobre o futuro da IA. Alegam, não sem razão, que suas perspectivas estão sendo ignoradas e que políticas mal desenhadas podem piorar a discriminação contra elxs.

Apesar de ser tocada pelos farialimers da pornografia não mainstream, essa iniciativa – chamada Open Mind AI – traz algumas contribuições interessantes. Manifestam que “a IA evolui a cada dia e é natural que as pessoas recorram a ela para satisfazer fantasias”, por isso a indústria adulta deve fazer parte do diálogo, evitando regulações que a prejudiquem. Elas alertam que deepfakes são hoje a maior ameaça da IA, “extremamente danosos às vítimas e também às performers”, pois “ameaçam tanto sua integridade humana quanto seus meios de subsistência”. Ao mesmo tempo, pedem que leis contra IA não resultem em censura do conteúdo adulto legítimo, jogando produtorxs marginais “para fora” das plataformas mainstream e forçando-os a uma clandestinidade digital. Ou seja, defendem um equilíbrio: combater os abusos (como deepfake) sem sufocar a criatividade e o ganha-pão de quem faz pornografia consensual.

Outro ponto importante que xs trabalhadorxs ressaltam: a exclusão dxs criadorxs adulto das grandes plataformas de IA. Atualmente, principais modelos generativos (DALL-E, Stable Diffusion, Midjourney etc.) banem estritamente qualquer nudez ou sexo em suas políticas, rotulando tudo como “conteúdo impróprio”. Isso coloca o campo erótico em desvantagem tecnológica, pois impede que educadorxs sexuais, artistas eróticxs e empreendedores do sexo usem ferramentas de ponta. Enquanto isso, como vimos, conteúdos pornográficos gerados por IA prosperam em nichos menos regulados. A OpenAI, maior das IAs, já sinaliza que quer reverter parcialmente esse banimento, estudando formas de permitir pornografia de modo responsável e com verificação de idade. Essa seria uma vitória para o campo da positividade sexual [sex-positive]: poder contar com IA avançada para criar produtos eróticos inovadores, ao invés de ficar limitado a ferramentas underground de qualidade duvidosa. Em resumo, trabalhadorxs do sexo estão reivindicando seu lugar à mesa – tanto para não serem prejudicadxs por restrições excessivas, quanto para que suas ideias sobre relação ética com corpos artificiais e reais sejam ouvidas.

Revolução digital ou refinamento da opressão?

Nessa altura já está bem claro que toda pornografia encena, de alguma forma, relações de poder e construções de gênero, certo? No caso da pornografia tradicional, há décadas já se fala como objetifica e submete corpos (especialmente femininos, mas dissidentes em geral), reforça padrões heteronormativos e hierarquias de gênero. Com a chegada da IA, no melhor dos nossos humores, surge a pergunta: essas tecnologias vão simplesmente automatizar os velhos vícios, vão piorar o que já existe ou têm potencial pra ajudar a subverter a normatividade sexual dominante?

Um primeiro ponto de atenção é que as IAs não criam coisas, elas geram a partir da realidade, e por isso são “artificiais”. Ou seja, elas se baseiam no que já existe no mundo e por isso herdam os preconceitos dos dados nos quais são treinadas. Modelos generativos de imagens (como os usados para criar rostos e corpos sintéticos) aprendem a partir de bilhões de fotos disponíveis online – um acervo repleto de representações misóginas, racistas e estereotipadas. Surpreendendo um total de 0 pessoas, pesquisas demonstram que, sem filtros adequados, as ferramentas generativas reproduzem as mesmas desigualdades e estereótipos de gênero presentes na internet. Isso inclui a famigerada sexualização desequilibrada, com um universo virtual inundado de imagens de mulheres seminuas ou hipersensuais, enquanto representações masculinas tendem a ser mais variadas. Em outras palavras, a IA “aprende” que mulheres são objetos sexuais, já que essa é a mensagem implícita de grande parte do conteúdo visual online.

Exemplos concretos ilustram esse viés. A jornalista Melissa Heikkilä, da MIT Technology Review, testou em 2022 um popular aplicativo de geração de avatares (Lensa AI) usando suas próprias fotos. O resultado? Seu avatar veio quase sempre em versões seminuas, com seios aumentados e estética de personagem fetichista, apesar de ela ter fornecido imagens comuns de rosto. Já seus colegas homens obtiveram avatares trajando roupas completas e exercendo papéis como astronauta ou cientista. Além disso, por Heikkilä ser asiática, muitas de suas imagens geradas tinham um viés fetichista de “mulher oriental”, com estilo de anime – enquanto uma colega branca recebeu foi sexualizada, mas menos. Essa experiência confirma um padrão sexista e racista: mulheres, especialmente de minorias étnicas, são retratadas de forma muito mais erotizada sem motivo, ao passo que homens são apresentados com individualidade e respeito  .

Outro estudo – em inglês – demonstrou como, ao se pedir a um gerador de imagens como o DALL-E para visualizar profissões, ele reforça estereótipos de gênero gritantes: engineer (neutro pra “pessoa engenheira”) quase sempre retorna imagens de homens, enquanto nurse (que pode designar mulher ou homem enfermeirx) dá imagens de mulheres… No contexto sexual, não surpreende que se alguém tentar gerar “mulher sexy” obtenha figuras próximas à estética pornográfica heteronormativa (corpos jovens, magros porém curvilíneos, pele sem imperfeições, posses submissas ou disponíveis). A IA, quando alimentada pela imagética mainstream, tende a reciclar a mesma normatividade de gênero e desejo que já conhecemos: o olhar masculino hegemônico (male gaze) codificado em algoritmo.

A marola que já cresce logo se tornará uma avalanche de conteúdos automatizados replicando os mesmos roteiros pornográficos machistas de sempre – agora em escala industrial 4.0. Deepfakes já são usados para desumanizar mulheres famosas, colocando-as em cenas degradantes ou de violência sexual como forma de puni-las ou humilhá-las. Já nos diziam MacKinnon e Dworkin, que a pornografia [mainstream] “é a subordinação gráfica e sexualmente explícita das mulheres, apresentadas como objetos que gostam de ser humilhadas e violentadas”. Infelizmente, a IA tende a ampliar esse fenômeno: a análise de 88 estudos recentes apontou que a maioria das pesquisas sobre IA e sexualidade concentra-se justamente nos danos dos deepfakes, pois esse conteúdo “vitimiza predominantemente mulheres e meninas, inserindo seus rostos em material pornográfico sem consentimento”. Ou seja, já estamos surfando em uma automação da violência imagética contra grupos historicamente oprimidos.

No entanto, parece clichê mas precisamos lembrar: a tecnologia por si só não possui uma moral intrínseca – tudo depende de quem a programa e com quais fins. Assim como Wendy McElroy propôs, ao contrário de Dworkin, enxergar a pornografia como uma linguagem neutra que pode ter diferentes conteúdos e intenções, poderíamos conceber a IA como um novo meio que tanto pode perpetuar a degradação quanto ajudar a desafiar a ordem sexual vigente. Na definição de McElroy, “pornografia é a representação artística explícita de homens e mulheres como seres sexuais”, uma forma de expressão cuja ética depende do contexto. Nessa linha, a pornografia poderia ser reapropriada para questionar a lógica heteronormativa dos corpos e performances, e até para “criar novos repertórios” de prazer e relacionamento. Essa visão – compartilhada por vertentes do feminismo pró-sexo e do movimento pós-pornô – nos convida a imaginar usos subversivos da IA no campo erótico.

Como a IA poderia ajudar a desafiar normas, então? Por exemplo, ela permite escapar das limitações biológicas e de mercado na representação de corpos. Com modelos generativos, poderíamos criar pornografia com corpos que raramente vemos no mainstream, ou mesmo totalmente imaginados: corpos gordos, trans, com deficiência, corpos fora do padrão branco-cis-hetero de revista seriam apenas o começo… Já há artistas e desenvolvedoras experimentando em renders eróticos de figuras não normativas, esboçando uma pornografia mais inclusiva. Uma IA treinada em imagens consentidas de pessoas diversas poderia democratizar quem pode “estar” na pornografia, sem depender dos estúdios tradicionais que quase sempre privilegiam um só tipo de beleza. Além disso, narrativas alternativas – focadas em prazer feminino, em inversão de papéis de dominação, em sexo queer etc. – podem ser exploradas via storytelling automatizado tanto quanto os já famosos enredos de violência e sexo tabu. Há potencial para simular cenários eróticos diferentes do catálogo usual, talvez ajudando pessoas a explorar fantasias de forma segura e consensual.

Tudo isso, claro, exigiria intenção política e cuidado. Não basta ligar uma IA e esperar que ela por milagre gere conteúdo radical – é preciso programá-la com esse viés emancipador. Se grupos feministas, queer e antirracistas tiverem acesso a essas tecnologias e interesse, podem tentar hackeá-las em favor de narrativas libertadoras. É uma arena de disputa: a mesma IA que um desenvolvedor misógino usa para espalhar deepfakes abusivos pode ser usada por artistas dissidentes para criar pornografia ética e positiva. Em suma, a IA poderia amplificar tanto a libertação quanto faz com a opressão, dependendo de como a empregamos. Cabe lembrar, como diz Audre Lorde, que “o erótico é um poder profundo dentro de nós” – e as máquinas não precisam sufocar esse poder, podem até ajudar a expressá-lo de formas novas, se as alimentarmos com esses dados.

[Sim, mas sejamos brutalmente honestas sobre a assimetria de poder. De um lado, temos coletivos com recursos limitados, operando na base do ativismo. Do outro, corporações com poder computacional e financeiro quase ilimitado. Propor “cooperativas tecnológicas” como contraponto é necessário, mas é suficiente? Até hoje as propostas de outras ponografias, como o pós-pornô ou o pornoterrorismo representam resistências que, na prática, estão confinadas a um nicho, enquanto o mainstream é uma constante avalanche de conteúdo industrializado e tóxico, pique a Vale em Brumadinho. É importante pensar em novas apostas de liberdade sem cair na vala neoliberal: “se não gosta do mercado, crie o seu”. A verdadeira luta política, principalmente a que se trava em campos da imaginação e desejo, passa necessariamente pela regulação radical das grandes plataformas, pela taxação de seus lucros e pela responsabilização legal de suas infraestruturas, bem como dos sujeitos que fazem sua operação.]

Döring, N., Le, T., Vowels, L.M. et al. The Impact of Artificial Intelligence on Human Sexuality: A Five-Year Literature Review 2020–2024. Curr Sex Health Rep 17, 4 (2025)

Como primeiro ‘bordel cibernético’ com bonecas de IA vem gerando discussões entre críticos e defensores