Deu Match! Amor em tempos de Tinder

Pode parecer pitoresco falar de Tinder, com tantos problemas mais sérios pra resolver, ou mesmo estar aqui transformando em assunto um não-assunto. Esse artigo tem como objetivo, justamente, apresentar os aplicativos de pegação como um assunto, e tenta situá-los no campo de questões sociais dignas de [um pouquinho] mais de atenção.

Isso se dá, em primeiríssimo lugar, porque nada no mundo existe apartado da natureza, no nosso caso, ela tem sido capitalista, sexista, racista, economicista, e opressora. Isso significa que se preocupar com o Tinder, o OkCupid e outros aplicativos que prometem o par perfeito é preocupar-se também com questões econômicas, sociais, tecnológicas, de gênero, sexualidade e relações humanas, e todas suas intersecções, apenas para citar temas que concernem a este texto. Aplicativos de pegação têm muito a ver com exploração da força de trabalho, mais-valia, consumismo e aceitação sexual. Aqui várias questões serão pontuadas, nenhuma esgotada. O objetivo não é elucidar um assunto, mas antes, torná-lo visível.

As questões acerca das relações afetivo-sexuais são sistematicamente* interditas no discurso político. A despeito dos avanços conquistados pelas diversas ondas feministas, (além de iniciativas queer e GBTA), especialmente em relação ao pessoal ser político e o corpo como espaço de luta, as relações afetivo-sexuais são comumente tratadas como questões pessoais e privadas. Aparte a dimensão de intimidade destas relações, resguardada em maior ou menor grau em relação aos acordos envolvidos, estas associações têm amplo espectro público e coletivo, e negar ou escamotear sua importância é justamente reforça-los como espaços de poder. Por serem espaços de poder cercados de tabu e regras específicas, esses temas são fundamentais para, por exemplo, discutir um outro mundo possível.

Dito isto, vamos aos fatos:

Assim como dois ou mais adultos se pegarem é uma prática profundamente enraizada na cultura humana, o “meu amigo quer te conhecer” tampouco é novo. Tanto o intermédio de uma pessoa é prática antiga quanto a seleção e apresentação de possíveis candidates também existe há séculos, milênios quiçá. Da mesma forma, o uso de troca de mensagens como forma de aproximação e mesmo manutenção de relações (afetivas e sexuais) poderia, provavelmente, com um pouco de pesquisa, ser datado da época das cavernas, ou, no mínimo, na troca de correspondências e tantos romances epistolares que temos notícia, há pelo menos dez séculos atrás. Para efeitos de recorte de tecnologia, pensemos que a Match.com data de 2000. Esse conglomerado de serviços de pegação começou como um site de encontros, como tanta agências reais faziam antes dele, onde preenchia-se uma ficha e através de algumas combinações e disponibilização do perfil encontrava-se candidates.

O conglomerado Match.com possui entre seus mais populares apps o Tinder, Badoo, Parperfeito e Divino Amor. Este último, dedicado a pessoas que buscam um amor em Cristo. A variedade de aplicativos é uma primeira informação relevante: só no Brasil, são mais de vinte possibilidades. Entre elas, é possível usar um aplicativo com recorte de gênero e identidade sexual, especificando serviços para lésbicas, gays, transexuais, travestis. É possível flertar com quem confirmou presença nos mesmos eventos no facebook que você ou com quem você cruzou na rua. Nos aplicativos mais “padrão”, é possível responder a uma série de perguntas e através das respostas em comum achar combinações ideais ou ainda encontrar alguém para patrocinar você. Enfim, as opções são tantas quantas as possibilidades afetivo-sexuais.

No mundo, em pesquisa de 2015, uma em cada três pessoas admitiu que flerta online. Entre estas pessoas que usam aplicativos, também uma em cada três admitiu já estar em um relacionamento (infelizmente, na pesquisa não houve recorte de quantas estão assumidamente em um relacionamento em seus perfis, e quantas a decisão é mútua, mas a mesma pesquisa dá conta de que mais de ½ mente). Também, em um recorte de maiorias, a maioria que usa os aplicativos de pegação são homens, a média etária de 33,8 anos (43%), e são pessoas que trabalham em horário integral e em geral ocupam cargos de gerência ou profissionais sênior (63%). Uma explicação seria que esta faixa, preocupada com a carreira profissional, usaria aplicativos pela facilidade e economia de tempo e energia disponível para pegação. Mais além da justificativa liberal para o serviço, está o interesse liberal no serviço: essa faixa, solteira e cada vez mais sem crianças, tem dinheiro para gastar em uma suposta qualidade de vida, tornando-se alvo principal dos serviços e produtos de nosso tempo. Em 2015, 100 milhões de pessoas ao redor do mundo utilizavam aplicativos de pegação. O Brasil é um dos três países que mais utilizam o Tinder, sendo responsável por cerca de 7 milhões de matchs anuais. Cada match, uma centena de dados.

Desta feita, é importante refletir sobre o que significa tamanha circulação de dados. Como criamos, como circula, quais os destinos e decodificações destes dados são perguntas que devem ser feitas, já que estes já são parte importante de nossa cultura de consumo – onde ou você consome ou é produto – de forma individual ou coletiva, através da Big Data. Também quais marcadores são usados para alimentar essa cultura de pegação, já que nascem, antes de tudo, nas cabeças de desenvolvedores na Vale do Silício. Como guardamos estes dados? A quem pertencem?

Esta última questão liga-se a outra esfera de preocupação: os limites entre público e privado, íntimo e aparente. Não só se são públicos os dados, ou a quem pertencem no final, vide a treta do Zuckerberg, mas também como constroem-se as relações, o que são temas referentes apenas às pessoas envolvidas e o que são temas concernentes a acordos coletivos.

Doutro lado, a economia cotidiana conforma-se cada vez mais em uma cultura do uso de apps e aparelhos móveis. A mobilezação da vida provoca a geração de hábitos de consumo imediatistas, à mão, com recursos e utilidades de um computador portátil. Somada à appzação da vida, esses computadores pessoais podem ser usados para serviços muito específicos, pedir gás, encontrar alguém pra transar ou fazer uma transferência bancária. Também são altamente personalizáveis e usam aprendizado da máquina para otimizar a experiência.

As facilidades oferecidas pelos apps e serviços móveis podem estar fomentando características sociais específicas, afetando diretamente a forma como nos relacionamos. Seja pela personalização oferecida pelos apps, impossível na vida real – apesar de ser bem próximo do possível através do dinheiro – seja pelas maneiras utilizadas para mediar a relação entre pessoas reais, os aplicativos influenciam na percepção e relação com outrem, mas também consigo. Se a forma como se apresenta ao mundo está baseada, ainda que em partes, em uma plataforma digital, ali será criada e alimentada uma persona que influencia na autopercepção. Os aplicativos de pegação, dessa forma, talvez não o façam mas têm o poder de criar e reproduzir formas de se relacionar consigo e com outres. A maioria destas formas e inclinações fazem parte da natureza humana e se manifestam há anos, outras, no entanto, são alimentadas diretamente por tecnologias contemporâneas como estes aplicativos.

A potência dos aplicativos de pegação é visível também através dos riscos de segurança que oferecem. Do mais óbvio ao mais sofisticado, os fatores anteriores somados são uma bela fonte de riscos: a cultura de mobilezação por exemplo, coloca em todos os bolsos um – às vezes nem tão – pequeno computador pessoal dotado de, no mínimo, sistema de antena e rádio. No geral, conta também com acesso a internet, barômetro, acelerômetro, câmera etc… A quantidade de dados que um aparelho destes pode coletar e processar é bastante relevante, não só os “involuntários” mas também os voluntários. Além dos dados coletados através do aparelho, que podem trafegar com ou sem sua permissão, os dados podem ser interceptados ou mesmo a pessoa que os recebe pode não ser exatamente o que diz ser.

Uma pesquisa de vulnerabilidade promovida pelo antivírus Kaspersky mapeou que um quinto dos homens (que são a maior parte dos usuários do aplicativo) divide sua informação pessoal depois de apenas alguns dias. Entre as mulheres, uma a cada quatro prefere não responder a pergunta, e o outro quarto divide informação íntima somente depois de meses.

Nos casos de ataque promovido por um pessoa intermediando a informação, ou roubando a informação das companhias, temos os clássicos casos de chantagem e extorsão. Além dos impactos individuais causados, esses casos também servem como demonstrativo do volume e relevância social da Big Data composta por informações dessa natureza.

Caso emblemático é o do site/serviço Ashley Madison, uma empresa de encontros especializada em pessoas já casadas. Com o lema “a vida é muito curta, curta um caso”, o site, ainda em funcionamento, teve os dados de 30 milhões (em uma database de 37 milhões) de pessoas hackeados e divulgados em 2015. O grupo que se responsabilizou pelo ataque chamava-se Impact Team [Time de impacto] e não chantageou nem usuários nem a empresa, apenas divulgou os dados. O objetivo, segundo comunicados divulgados pelo grupo, era forçar sites da controladora da Ashley Madison a sair do ar, por suas práticas pouco “éticas”. Além do site de encontros para pessoas casadas, a empresa também controla desde 2008 outra agência virtual de encontros entre “homens bem-sucedidos e mulheres bonitas”. Além dos objetivos morais do grupo hacker, o vazamento é digno de nota também pela natureza das informações vazadas. Ao contrário de outros leaks, que miraram figuras importantes ou ambientes políticos, o ataque à Ashley Madison expôs dados sobre a sexualidade de homens e mulheres que muitas vezes eram ocultados de seus pares, famílias e sociedade. De orientação sexual a fetiches, centenas de pessoas ficaram em choque com o que poderia ser exposto, o que motivou inclusive suicídios, e dezenas de homens desesperados. Foi a primeira vez que um montante massivo de dados “íntimos” sobre a sexualidade das pessoas foi jogado nas interwebs da vida.

Quem viu o filme conhece as dramáticas consequências desse desiresleak fictício

No tráfego de informações, muitos aplicativos expoem a grande risco usuárias e usuários. O Tinder, por exemplo, sobe fotos em um http normal, não seguro. Assim, interceptando as informações sobre uma simples foto uploadeada no app é possível ter acesso a informações como gênero declarado, orientação sexual, modelo do celular, sistema operacional, idade e aplicativo em uso. Estes mesmos dados, no entanto, podem ser usados pela companhia com ou sem a autorização de quem segue deslizando fotos. Há alguns anos aplicativos como Grindr são acusados de repassar informações sigilosas e sensíveis, como o status de HIV das pessoas. O Okcupid repassou a agências de propaganda e big data informações sobre o uso de drogas fornecidas por quem usa o aplicativo no computador ou mobile. Não sabemos, enfim, o que fazem com toda informação acumulada, informação extremamente bem georreferenciada.

Além dos ataques virtuais, existem possibilidades e registros de ataques planejados para se tornar físicos. A informação dos locais de conexão e distâncias entre users, por exemplo, é pública e parte da oferta do aplicativo. Assim, em locais como a Rússia, e seu histórico de perseguição sexual, a triangulação através dos locais de conexão torna possível encontrar usuários do Grindr, sem o consentimento e conhecimento desta pessoa.

Os dados coletados por esses aplicativos não se limitam aos informados voluntariamente nos questionários, tampouco às leituras dos espertofones enquanto máquinas. O conteúdo das conversas também é armazenado pelas companhias. Somam-se a isso tempo gasto em cada foto, horários e lugares de conexão, porcentagem de pessoas brancas e negras nas interações, palavras mais usadas e dados que se referem a você mas não são seus, como por exemplo as características das pessoas que em geral se interessam por você. As possibilidades de coletas de dados são enormes.

A maior parte dos aplicativos é bastante obscura em relação ao que faz com os dados e mesmo por quanto tempo os mantém mesmo quando uma conta é desativada/apagada. Mesmo entre os aplicativos de uma mesma empresa, como o Parperfeito e Tinder, pertencentes à Match.com, existem políticas de privacidade diferentes.

As influências dos aplicativos de pegação e a cultura de dados que circunda a questão estão longe de serem esgotados, já que mal são estudados, em especial cá em terras tupiniquins. Há quem diga, por exemplo, que os aplicativos cresceram em função do papel do feminismo na contemporaneidade, já que aumentou o controle das mulheres sobre o flerte. Posto que as interações só são possíveis com demonstração de interesse mútuo, o universo de gentlemans enviando gratuitamente o pênis diminuiu. Os aplicativos também aumentam o controle e autoconfiança, não só de mulheres mas também de grupos historicamente marginalizados na busca de parceires afetivo-sexuais, como pessoas trans ou mesmo lésbicas, bisexuais e gays. Pessoas com fetiches também têm mais liberdade e facilidade em encontrar companhias, já que as preferências são parte da apresentação (mais ou menos enfática) de cada persona nos aplicativos. A interação humana em constante adaptação às tecnologias e economias sofreu impactos que podem também se chamar positivos.

No entanto, o assédio não diminuiu de forma tão drástica a ponto de ser realmente uma vitória. Mesmo aumentando o poder das mulheres em relação às escolhas sexuais, a decisão final – íntima e pública – ainda está relegada ao homem, que decide, por exemplo, o que é sexo e o que é namoro. Mesmo quando as mulheres decidem, por exemplo, ter “só sexo”, o parceiro tem mais poder em legitimar ou deslegitimar a decisão do que a própria mulher. O “aumento” de opções também pode ter diminuído o “valor” das mulheres, já que a facilidade em encontrar novas parceiras pode ter diminuído a disposição masculina em “aguentar” exigências femininas – como de respeito, por exemplo. Por fim, as relações afetivo-sexuais, envolvidas em tabu desde sempre, sofrem com a cultura dos aplicativos, mobiles e pegação, passam por um processo de gamificação, outra palavra em voga no universo tecnológico e consumista. Quem pega mais, como se dá a interação entre pares, quais os objetivos destas interações, por exemplo, tornam-se etapas ou processos onde a jogabilidade e objetivos imediatos são mais importantes que a conexão humana, por assim dizer.

Longe de apenas criarem novos problemas, os aplicativos de pegação e a cultura que deles emerge reforçam e ilustram dispositivos de poder que já existem internalizados nas sociedades que atendem. A machismo, a volubilidade das relações, a intolerância de gênero e práticas sexuais etc já existiam antes dos aplicativos, mas ganham novos contornos com a tecnologia à disposição. Ainda objetivando apontar a pertinência do tema, objetivo deste ensaio, um tópico pode ser destacado nesse sentido.

Observando uma tabela dos aplicativos mais usados no Brasil, produzido pelo Privacidadebr em 2017, é possível identificar as falhas de comunicação e segurança entre aplicativos e pessoas usuárias. A coluna do meio chama a atenção: apenas um entre os 14 aplicativos mais baixados solicita consentimento para compartilhar informações com terceiros. Consenso e consentimento são conceitos ainda pouco claros para a maioria dos relacionamentos. Impregnados do mito do amor romântico e machismo patriarcal, grande parte dos relacionamentos (em especial heterossexuais) não funciona baseado em acordo mútuos esclarecidos e constantemente reformados. Não se pede consentimento nestes relacionamentos e quando isso se passa muitas vezes ter dito sim uma vez dispensa reiterar o consentimento. O mesmo nos aplicativos, o mesmo na vida romântica. Os aplicativos reproduzem em sua lógica as mesmas premissas dos relacionamentos, e a divulgação de dados sem consentimento poderia se comparada, por exemplo, a pornografia de vingança, uma exposição de vítimas que sequer sabem que estão sendo expostas. Nas relações entre user tais características também ficam claras, já que apesar de relativo controle atribuído às mulheres ainda são espaços de assédio, abuso, exposição e controle. Uma vez que a chave para bons relacionamentos é o acordo mutuo e consensual, esses aplicativos estão reforçando características opressivas e inserindo uma forma de se relacionar que altera o suporte mas mantém a má qualidade das relações.

https://chupadados.codingrights.org/suruba-de-dados/

http://privacidadebr.org/dating-apps/

https://www.kaspersky.com/blog/dating-apps-threats/19905/

https://ourdataourselves.tacticaltech.org/posts/20-data-dating

https://www.theguardian.com/technology/2016/feb/28/what-happened-after-ashley-madison-was-hacked

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